O “Annuncio de Antonio José da Cunha” e a “Resposta ao annuncio” por
Bernardo José da Costa, impressos por encomenda dos autores na Imprensa
Imperial e Nacional, circularam em 1826. Encartados no Diário Fluminense
com uma semana de diferença, os documentos contam uma briga de família
de folhetim para novelista nenhum botar defeito. Também antecipam a
promiscuidade entre público e privado à altura dos tempos de Facebook ou
Twitter.
Tudo começa com a publicação do libelo de Antonio José. Danado da vida
com o que chamou de “execrável profanação”, divulga um rol
impressionante de improbidades cometidas contra sua pessoa por sua
esposa, seu genro e sua filha. Explica que, após ausência de três anos,
retorna à Corte e ao lar e encontra sua mulher grávida do genro! Este,
por sua vez, havia “violado a pudicícia” de sua filha, com quem acabou
se casando para reparar o malfeito.
Com profunda dor de cotovelo, Antonio se esmera na descrição de seus
desgostos: sua esposa, “esquecida dos sentimentos de pudor, o mais belo
ornamento de seu sexo, quebrou a união conjugal, e que fora seguida de
sevícias e (...) escandalosas libertinagens”. Seu sofrimento era tamanho
que “as lágrimas involuntariamente corriam de seus olhos”! O leitor
quase se solidariza com o infeliz, injustamente “lançado à desonra
pública”. Não bastasse, o marido traído acusa a família de se unir para
matá-lo, asfixiando-o com um pau e aproveitando sua vulnerabilidade
momentânea para derrubá-lo escada abaixo, sem dó nem piedade.
Felizmente, Deus fez a sua parte e ele escapou da morte. Em seguida, a
família saqueia sua casa, levando as pratarias e objetos de valor. E
ainda foge para providenciar o aborto da criança e dar sumiço às provas
do adultério.
Indignado, José da Cunha expôs as mazelas da família |
A indignação do marido vai explodir quando, “buscando o caminho das
leis, persuadido de que só nelas o cidadão encontra segurança”, se vê
diante de um Tribunal “insensível às suas lágrimas e indiferente à causa
dos bons costumes”. É a gota d’água! Ele decide que, “se o Altar da
Justiça foi só para proteger o crime tão funesto na ordem da sociedade,
eu os deixarei entregues à opinião pública, que os conhece e
detesta...”. Tenta desmoralizar o sistema jurídico, dizendo que este se
valeu de falsos testemunhos para contradizer a acusação, recrutando
“mulheres corrompidas e cúmplices”. Além disso,questiona a legitimidade
da sentença, uma vez que, segundo ele, tinha tido parecer favorável do
próprio imperador.
Corno ou caluniador?
O outro lado da história aparece na semana seguinte, quando o genro
conta sua versão usando os mesmos meios do sogro. Encarta no jornal sua
“Resposta”, desmentindo todas as acusações do “caluniador” e trazendo
novos elementos para o enredo.
Conta que seu casamento com a filha, “a quem ternamente ama”, foi
absolutamente legítimo e contou com a aprovação do pai, que inclusive
deu como presente de casamento dois escravos, e os convidou para viver
em sua casa. E que em hipótese alguma praticaria o abominável “adultério
incestuoso” com sua sogra, bem como o aborto do suposto feto. Segundo
Bernardo, foi ganância a origem de todo o mal: seu sogro – “chefe
cabeçudo, teimoso e insolente” – quis obrigar a esposa a assinar um
papel em branco que lhe permitisse dilapidar o patrimônio familiar e ir
embora com o dinheiro.
Bernardo nega veementemente a acusação de tentativa de assassinato.
Relata que foi o próprio caluniador que chegou à casa, diante da recusa
da esposa a assinar o papel, “levando o seu danado espírito de raiva e
impróprio do sexo varonil, qual foi – o entrar a fazer bulha em casa com
um pau de machado e ao mesmo tempo gritar (...) contra a mulher, filha,
e genro, que o matavam....”. E solta o verbo sem pudor: “Endiabrado
homem! Manhoso! Embusteiro!”. Aproveita também para refutar a acusação
de roubo.
O genro encerra com eloquência: “Em poucas palavras: Antonio José da
Cunha esteve em Santos quatro anos menos quatro meses, vivendo como ele
quis, sem querer saber da família que aqui deixara; sem lhe mandar
socorro algum para a sua subsistência; precisando sua mulher e filha
lavar e engomar roupas de estranhos para viverem.” Ora, quem vai à roça
perde a carroça, amigo!
Diante de tal discrepância de relatos, não seria possível tomar
partido. Afinal, apesar de ambos apelarem para o juízo da opinião
pública, diz o ditado que em briga de marido e mulher não se mete a
colher. Mas que a fila anda, anda..
Por Lia Jordão
Fonte: Revista de História