Mercado de escravos RJ |
Análise do Cemitério dos Pretos Novos destaca colossal dimensão da escravidão no Rio de Janeiro
Sepultada por toneladas de terra e séculos de esquecimento, jaz no
Centro antigo do Rio, uma dolorosa memória da escravidão. São os
resquícios do Cemitério dos Pretos Novos, cimentados sob os bairros da
Gamboa e da Saúde. Eles reaparecem aos poucos, em escavações, análises
de ossos, dentes e objetos. Cada um deles revela um pouco mais de uma
história que assombra pelas dimensões da crueldade e da ambição que
trouxeram da África milhões de escravos para o Rio. Uma dessas análises
foi concluída este ano e confirma a tese de que a cidade foi um dos
maiores portos de entrada de escravos das Américas.
Pessoas
escravizadas originárias de quase todas as partes da África chegavam ao
Rio e daqui podiam ser levadas para o restante do país. Muitas não
resistiam às condições desumanas da travessia do Atlântico ou do mercado
de escravos do Rio e eram enterradas perto do porto. O termo enterro é,
de fato, um eufemismo. Os corpos eram abandonados à decomposição ou
queimados.
Nos anos 1990, alguns desses corpos foram encontrados
durante a reforma de uma casa na Rua Pedro Ernesto, na Gamboa.
Arqueólogos do Instituto de Arqueologia Brasileira fizeram ali em 1996
um resgate do que fora acidentalmente exposto, publicando depois os
primeiros estudos. Mas foi só este ano que cientistas concluíram uma
análise mais detalhada dos dentes e ossos. Um trabalho de detetive, com
tecnologia moderna, para investigar um drama de quase 200 anos. Apoiada
pelo CNPq e pela Faperj, a pesquisa reuniu cientistas da Escola Nacional
de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), do Museu Nacional/UFRJ, do Laboratório
Geochronos da UnB e da Universidade de Indiana, nos EUA.
— Há vestígios de 30 pessoas. Estão muito degradados — diz Sheila Mendonça, bioantropóloga da Ensp.
O
DNA, de tão degradado, por enquanto nada revelou. Mas os pesquisadores
recorreram a uma técnica diferente e menos conhecida pelo público.
Chamada de análise de isótopos de estrôncio, ela mede a proporção desse
elemento químico nos dentes. É uma espécie de DNA geoquímico. O
estrôncio é um metal de nome estranho e características curiosas. Essas
proporções são assinaturas geoquímicas que dependem das características
das rochas de uma dada região.
— A análise do estrôncio do esmalte
dos dentes permanentes, que são formados na infância e não se
remodelam, revela um indício de onde viveu uma pessoa nos primeiros anos
de vida — explica Ricardo Ventura Santos, coordenador do grupo, da Ensp
e pesquisador do Setor de Antropologia Biológica do Museu Nacional.
A
diversidade geológica na África compreende quase toda aquela existente
no planeta. O estrôncio extraído dos dentes das pessoas enterradas no
Cemitério dos Pretos Novos reflete essa diversidade planetária.
—
As pessoas ali vieram de todas as partes da África. Nosso estudo reforça
como o tráfico de escravos era uma prática espalhada pelo continente
africano. Indica também as monumentais dimensões do tráfico realizado
pelo porto do Rio — destaca Ventura.
O Cemitério dos Pretos Novos
foi criado pelo Marquês do Lavradio em 1760. Por 70 anos, funcionou ali
uma fábrica de horrores. O marquês se viu obrigado a abrir um novo
cemitério depois que o porto de escravos foi transferido da Praça XV
para o Valongo (atual Rua Camerino).
— Temos que levar em conta
que nosso conceito moderno de cemitério não se aplica ao que existia
àquela época. O Cemitério dos Pretos Novos consistia em um lugar
cercado, onde os corpos eram queimados ou deixados insepultos. Covas
eram abertas e corpos, empilhados — explica Sheila.
Os
pesquisadores calculam que lá tenham sido enterradas, pelo menos, de 20
mil a 30 mil pessoas. O Cemitério dos Pretos Novos era o destino de
muitos dos que já chegavam doentes. Ele podia ser avistado do porto e do
mercado de escravos do Valongo, para horror dos cativos. O cemitério
passou a receber os enterros antes destinados ao Largo de Santa Rita, em
frente à Igreja de Santa Rita.
— Não existem estimativas da taxa
de mortalidade dos escravos que chegavam ao porto, mas sabemos que
deveria ser elevadíssima. Um dos aspectos importantes das pessoas
enterradas lá reside no fato que, ao que tudo indica, apenas 5% das
pessoas enterradas lá não eram escravas. Isso torna o Cemitério dos
Pretos Novos o mais africano do Brasil — diz Sheila.
Ela, Ricardo e
outros pesquisadores, incluindo Murilo Quintans Bastos e Roberto
Ventura, da UnB, buscam pistas sobre as origens dessas pessoas mortas
pouco após o desembarque. Com as histórias dos mortos esperam dar vida a
um dos menos conhecidos capítulos da história da escravidão no Brasil.
Depois
que o cemitério foi fechado (por motivos “sanitários” e legais, já que o
tráfico de escravos foi proibido), a cidade começou a aterrar o pântano
e a praia. Terra e areia cobriram os restos dos mortos e a memória. A
Rua do Cemitério, por exemplo, hoje chamase Pedro Ernesto.
Até
agora, nunca houve escavações contínuas na região dos Pretos Novos. O
material analisado é resultado do trabalho da bioarqueóloga Lilia
Cheuiche Machado, do IAB. Lilia observou que a maioria dos mortos era de
homens jovens, inclusive crianças.
— Todo o material que analisamos vem de quatro buracos. Os ossos estavam misturados — analisa Sheila.
Das
30 pessoas, só duas estavam fora do padrão esperado. Um era um homem
mais velho, que poderia viver no Rio há mais tempo, e outro talvez não
fosse africano.
— Todos os demais eram africanos recém-chegados.
Um dos aspectos que nos chamou a atenção foi encontrar dentes com sinais
de polimento — observa Sheila.
O polimento é fruto de uma forma de higiene oral praticada por muitos povos africanos.
—
Esse polimento era resultado da mastigação de plantas específicas,
funcionava como pasta de dentes. Mas só há sinais da prática em
recém-chegados. Depois, elas não tinham mais como limpar os dentes dessa
forma e os sinais desapareciam. Alguns dos que analisamos possuíam
sinais bem claros, indicando que deveriam ter chegado há pouco tempo —
frisa Sheila.
Ao analisar marcas de polimento talvez seja possível
identificar que espécies eram usadas, onde existiam e, assim, de onde
veio a pessoa que as utilizavam. O trabalho continua. Mas será
fundamental que escavações revelem mais restos mortais e busquem
reconstruir outros dramas pessoais integrantes de um dos mais dolorosos
momentos da história do Brasil.
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